Portugal

 

OPINIÃO

Digitalização e gestão do risco: uma visão holística

A natureza do risco está a mudar

A essência dinâmica, sistémica e multidisciplinar própria dos “riscos emergentes” e daqueles que, por definição, são a cada momento desconhecidos, pode provocar efeitos catastróficos que constituem uma ameaça à existência das organizações que os seguram.

Porém, também os chamados “riscos conhecidos” contribuem para este clima de incerteza. A alteração gradual, porém, inevitável, dos modelos de negócio baseados no tradicional conceito de “propriedade e estabilidade” para o de “partilha e uso temporário de bens e serviços”, vem colocar novos desafios aos agentes de mercado, em particular no que remete para a cobertura técnica destes velhos riscos com novas características, os modelos de distribuição a utilizar, o grau de envolvimento com os clientes e a gestão da ubiquidade com estes últimos.

Espaços de vulnerabilidade e resiliência

É com base neste cenário, e à boleia da evolução da tecnologia digital, que os atores de mercado têm a possibilidade de passarem de consumidores de dados a organizações orientadas aos e pelos dados. Assim, podem compreender melhor os riscos que seguram ao mesmo tempo que criam experiências memoráveis para os seus clientes e colaboradores.

Nesta aparente dicotomia entre gestão do risco e inovação resultante da transformação digital, surge uma das questões menos discutidas, porém entre as mais interessantes da nova gestão do risco: a relação entre resiliência organizacional e os chamados espaços de vulnerabilidade.

A mudança de paradigma potenciada pela transformação digital tem, habitualmente, como racional, proporcionar aos clientes experiências de utilização memoráveis, que criem o contexto favorável à compra de produtos e serviços, à fidelização dos mesmos e ao aumento do respetivo valor. Em paralelo, visa, também, o aumento da eficiência dos processos, a qual liberta bottom line value.

Ora, a dicotomia a que aludimos resulta da necessidade de compatibilizar objetivos, aparentemente opostos, entre:

  1. Modelos de negócio, de distribuição e de gestão da relação com o cliente que favoreçam a criação de experiências positivas, assentes em jornadas coerentes independentemente dos canais utilizados (desde a deteção da necessidade do cliente até à respetiva satisfação);
  2. A necessidade de aumentar a eficiência operacional;
  3. Um apertado ambiente de controlo interno, com pouco apetite para o risco e que privilegia a centralização de operações e a ausência de variabilidade das mesmas.

A resiliência organizacional é, tradicionalmente, associada a controlo, constância e previsibilidade, atributos pensados para uma performance ótima em ambientes de pouca variabilidade e em que a incerteza é reduzida.

No entanto, como vimos, os novos tempos caracterizam-se, precisamente, pela incerteza dos riscos emergentes e não conhecidos, assim como pela variabilidade inerente aos novos modelos de negócio e a uma gestão holística dos clientes, independente dos canais de distribuição por este utilizados.

Para gerir este tipo de riscos, necessitamos sobretudo de cultivar competências organizacionais como a perseverança, a capacidade de adaptação à variabilidade e à imprevisibilidade, que são desejadas por aqueles com uma perspetiva evolucionária dos sistemas abertos, como é o caso das empresas.

A questão que então se coloca é saber como evitar o aparecimento dos espaços de vulnerabilidade que existem nas organizações quando se tenta conciliar decisões dilemáticas sobre eficiência e controlo, sobretudo em setores regulados da economia. Pensemos, por exemplo, nas imensas possibilidades oferecidas pela criação de perfis de clientes baseados em dados de redes sociais ou na navegação nas nossas próprias jornadas, com a necessidade de gerir riscos de roubo de identidade ou questões de privacidade de dados pessoais. Ou, ainda, na necessidade de assegurar jornadas ininterruptas, com a impossibilidade de tomar conhecimento de documentos pré contratuais e de assinar contratos digitalmente.

Uma visão holística da transformação digital e da gestão do risco

A premissa de partida é considerar que a gestão do risco não é uma linha de defesa autónoma dos níveis estratégico, tático e operacional, mas antes parte integrante dos mesmos desde a respetiva conceção, desenho e operacionalização.

Na prática, aquando do desenho das jornadas do cliente, deveremos ter, desde o início, uma visão sistémica do impacto das diferentes interações do mesmo cliente nos distintos níveis referidos acima.

A nível operacional, devemos introduzir a gestão do risco no desenho das interfaces com que o cliente interage, na forma como esta se operacionaliza através dos processos de negócio e dos sistemas que os suportam.

Só através da identificação dos distintos tipos de riscos nestas três dimensões de análise é que conseguiremos materializar os objetivos subjacentes ao processo de transformação digital. O qual, nesta visão, é parte integrante deste e não uma construção à posteriori que, tentando evitar os referidos espaços de vulnerabilidade, na realidade lhes dá origem. A consagração de controlos após o desenho sistémico da jornada, quebra a continuidade da mesma. Há, portanto, um duplo efeito negativo: esta perde coerência e os controlos são desprovidos de eficácia.

(Re)Imaginar a criação de valor

Este é um momento único na história do setor segurador. Os desafios estratégicos são profundos: como podem os atores do mercado reformular o papel e o propósito do seguro na sociedade; criar mais valor para os acionistas e, concomitantemente, assegurar a sustentabilidade do negócio; desbloquear a procura latente e melhorar a experiência do cliente e recuperar o impulso na busca da melhoria da produtividade? E quanto à competição global pelo talento, frequentemente escasso, necessário à nova gestão estratégica do risco e aos desafios colocados pela digitalização?

A transformação digital, vista enquanto instrumento de gestão estratégica, permite encontrar resposta a estes desafios e acelerar a resposta aos mesmos:

  1. Constrói os alicerces tecnológicos – fundacionais - que permitem aos seguradores a abstração dos complexos sistemas core existentes, possibilitando, de forma flexível e adequada à celeridade exigida pela procura, aumentar o conhecimento sobre o risco a subscrever, construir uma oferta flexível e hiperpersonalizada, lançar novas linhas de negócio e conectar-se com terceiros construindo ecossistemas digitais que alargam o seu mercado natural;
  2. Alavanca o crescimento do negócio, através da utilização proativa de inteligência cognitiva baseada em machine learning e, desta forma, aumenta o número de clientes, o respetivo valor e a taxa de retenção dos mesmos;
  3. Permite servir os clientes existentes nos momentos de tensão, em que o risco de materializa, de forma preditiva e prescritiva, automatizando operações e libertando o talento existente para o desempenho de atividades de elevada complexidade e valor acrescentado.

Um mundo híper-conectado e em rápida mudança cria incerteza organizacional e torna mais difícil a gestão do risco efetuada de acordo com as abordagens tradicionais. Os novos riscos transcendem as fronteiras sócio económicas, de política e de nacionalidade, tornando mais difícil prever a sua origem, ocorrência e consequências.

Dito isto, este tempo vertiginoso pode ser intimidante. Porém, a liderança das empresas deverá olhar para o mesmo não como uma ameaça, mas como uma oportunidade única de mudança organizacional que permita criação de valor e sustentabilidade.

 

Mário de Almeida Dias
Subject Matter Expert Insurance da Celfocus